ICCAT- A Comissão e o Brasil, a saia cada vez mais justa!
O mês de março apresentou situações complicadas para o setor pesqueiro, tanto produtores primários artesanais e industriais como processadores, comerciantes internos e exportadores têm experimentado circunstâncias de vergonha, desconfiança e de falta de credibilidade, derivadas, em sua ampla maioria, de realidade herdada de falta de governança e subjetividade normativa. Em específico, neste artigo sobre a recente reunião da ICCAT ocorrida entre 27 e 31 de março, em Lisboa, nossa consultora Natali Piccolo traz algumas impressões e reflexões a respeito das espécies que compõe o Painel I na organização desta OROP, ou RFMO.
A Comissão Internacional para a Conservação do Atum e afins do Atlântico (ICCAT) na sua estrutura de governança, se divide em painéis, sendo o Painel 1, responsável pelas medidas de conservação e gestão pesqueira sobre os atuns tropicais, como a albacora-bandolim (BET), albacora-laje (YFT) e o bonito-listrado (SKJ) em águas internacionais. Na ICCAT, o Brasil possui elevada importância, ao considerarmos a série histórica acumulada de produção desde os anos 1950 a 2020, nos consolidamos como o 4º maior produtor de atuns tropicais entre as partes, levando em consideração os países da Comunidade Europeia como parte integrante de um único bloco -EU, (Figura 1), tendo apresentado o incremento das capturas ao longos dos anos (Figura 2), principalmente com o desenvolvimento da pescaria de Cardume Associado na década passada, ocorrendo predominantemente na região Nordeste do país.
Figura 1. Produção total de atuns tropicais por apetrecho e por parte contratantes da ICCAT (ICCAT, 2023)*.
Figura 2. Produção de atuns tropicais acumulada do Brasil por espécie entre os anos 1970 a 2020 (ICCAT, 2023)*.
● Onde estamos no Painel 1?
Entre 27 a 31 de março, ocorreu a 1ª Reunião Intersessional do Painel 1 do ano em Lisboa, Portugal. O Brasil, participou com uma delegação formada por 21 membros, entre eles o CONEPE, que contou com os serviços de nossa assessoria, atendendo o evento presencialmente ou remotamente, sendo a Secretária Nacional de Registro, Monitoramento e Pesquisa do Ministério da Pesca e Aquicultura, Flávia Lucena a Chefe da Delegação.
● O dilema do ovo ou a galinha - Definir o TAC ou a alocação de cotas?
A reunião objetivava discutir especialmente o TAC, do termo em inglês Total Allowable Catch, ou Limite de Captura Total, uma nova alocação de cotas, que é a divisão do Limite de Captura Total para a albacora-bandolim entre as partes. Debate este, que foi iniciado há 20 anos, sendo intensificado nos últimos anos, principalmente pelo entendimento, de países em desenvolvimento e costeiros na área sob gestão da ICCAT, liderados pelo Brasil, para que seja reconhecido o seu potencial produtivo e oportunizem o seu desenvolvimento, por meio do estabelecimento de uma cota individual. Busca-se que a nova forma de alocação das cotas não limite os países em desenvolvimento, mas sim, permitam a sua mobilidade e priorização, por apresentarem pesca artesanal quando comparado a capacidade dos países desenvolvidos. Atualmente poucas partes, como União Europeia, Ghana, Japão e China juntos, concentram mais de 68% do TAC para a espécie, que é de 62.000t.
Neste cenário, o único consenso obtido no encontro, foi da manutenção da resistência das partes sobre os pontos mais sensíveis, seja em permitirem o estabelecimento de um novo TAC, dentro do preconizado pelo Comitê Permanente de Pesquisa e Estatística da entidade (SCRS), da flexibilização dos países desenvolvidos em reduzirem os seus atuais percentuais individuais na captura total, disponibilizando assim oportunidades para o desenvolvimento demandado por outras partes, e ainda, a implementação do maior controle sobre o uso de FADs ou Dispositivos Agregadores de Peixes, que potencializam a mortalidade de juvenis, atentando contra a sustentabilidade deste estoque.
● A sustentabilidade do estoque a partir de diferentes olhares
As diversas propostas de incremento do TAC perpassam pela manutenção do valor atual de 62.000t até 77.000t. Em 2019, a Comissão definiu pela implementação de um programa de recuperação de no mínimo 10 anos para a espécie, com base na última avaliação de estoque. Dessa forma, de maneira consistente, o aconselhamento científico compartilhado com os delegados é de que um incremento abrupto do TAC atual, gerará riscos ao estoque, do qual, o gestor, (a própria Comissão), é o único responsável pela decisão e pelas consequências.
Com isso, o caminho mais fácil e tentador seria incrementar o TAC para fazer “caber” todas as partes e suas aspirações individuais de alocação de cotas. Mas para construir um novo TAC, os membros da Comissão deverão levar em consideração as incertezas contidas na avaliação de estoque, a crescente captura de juvenis da espécie e a dificuldade de controle das partes para a manutenção da sustentabilidade do estoque, com a aplicação das salvaguardas preconizadas pela abordagem precautória, enquanto se busca minimizar e atender as preocupações e necessidades do setor produtivo.
Apesar da ciência suportar a arena internacional de negociações, a interpretação dos resultados científicos pelas partes nem sempre é pragmática e uniforme, isto é, as medidas de precaução que cada um gostaria de ver aplicado sobre a gestão do estoque pesqueiro, precisam ser amplamente debatidas para que se possa reduzir a influência de interesses econômicos das partes, da dificuldade e divergências de compreensão das análises e resultados científicos, entre outros.
Tendo isso em mente, o consenso foi impactado negativamente pelas propostas de TAC acima de 70.000t - 73.000t, e estas seriam aceitas inicialmente se condicionadas ao aumento do controle sobre a operação de embarcações de cerco com FADs (seja aumento do período de defeso, redução da quantidade de FADs), de acordo com Japão, Estados Unidos, Reino Unido e Canadá.
Esta situação deve se agravar ainda mais, pois em uma análise consolidada dos planos de pesca das partes para o ano de 2023, resultou que as aspirações de pesca atingiram no total cerca de 90.000t/ano. A verdade é que para fazer dar certo, um princípio deveria ser definitivamente adotado pelos delegados: todos deverão perder, para que um resultado justo seja atingido. Aí sim, todos poderão ganhar. Só assim, haverá espaço para o diálogo.
Conforme o gráfico abaixo (Figura 3 - BET), nota-se que a partir do estabelecimento de um TAC para a espécie, houve um período de adequação das capturas para que de fato o plano de recuperação pudesse ser seguido.
No horizonte, futuro não distante, podemos observar, na Figura 3, no gráfico à direita, que um cenário mais desafiador se apresentará para a gestão e alocação de cotas da albacora-laje, assunto postergado há anos pela Comissão, também pela falta de definições na gestão da albacora-bandolim.
● Quem fica com o peixe?
Sem um TAC definido, a racionalização de uma metodologia de distribuição de cotas torna-se uma incógnita para as partes. O que aceitar, quanto aceitar, o que dar em troca torna-se abstrato, e a ponderação de perdas e ganhos para um balanço final positivo que sustente o consenso fica mais distante.
Entre as propostas de alocação de cotas apresentadas, destacamos que a do Japão com a África do Sul, com adesão posterior do Brasil, foi a mais discutida. Esta buscou construir um período de transição da alocação dos países desenvolvidos para os de desenvolvimento, permitindo o incremento da alocação ao longo dos anos ou mudança de categoria. Mesmo que não finalizada, e devido a dificuldade de diálogo entre os atores, a proposta ainda enfrenta muita resistência, também entre países costeiros e em desenvolvimento.
● De onde viemos e para onde vamos?
● Na ICCAT
O Painel 1 é um dos mais complexos da Comissão, seja pela elevada quantidade de partes contratantes com interesse na captura da espécie, nas diferentes características e capacidade de pesca e gestão das pescarias, ou das relações de influência e poder entre as partes. Em um cenário complexo de interesses diversos, a transparência e clareza metodológica podem facilitar a relação entre as partes para o atingimento de um futuro desejável comum.
Destacamos o que faltou nesta reunião, e parece que teremos acesso apenas em novembro deste ano, os resultados da avaliação de captura e esforço dos FADs sobre a espécie. A demanda de avaliação do impacto dos FADs sobre o estoque não é nova, mas há dois anos, foi firmado o compromisso da entrega destas informações ao Comitê Científico para avaliação. Sem isso, as posições seguem estanques, com decisões que, mesmo se construídas ao longo do ano, poderão ser alteradas na reunião Anual da Comissão no final do ano, à luz destes resultados.
A ausência de atitude da Comissão frente a dificuldade de obtenção de dados das pescarias, cumprimento de regras e dificuldade de mediar as negociações para soluções razoáveis, demandam um maior esforço institucional da organização para recuperar o ritmo no cenário internacional e garantir os resultados positivos a qual se propõe, de transparência e práticas sustentáveis. Ainda assim, faz-se fundamental que o Brasil participe ativamente das discussões e busque manter a sua posição histórica de influência e mediação de posição e interesse dos países em desenvolvimento, sempre levando em consideração o aconselhamento científico.
● No Brasil
Em casa, o trabalho seguirá árduo e demandará um elevado espírito de colaboração e comprometimento do governo e do setor, sejam pescadores, armadores de pesca e indústria, com apoio de um corpo científico. Em recente anúncio realizado pelo Ministério da Pesca e Aquicultura em reunião com o setor produtivo em março, o Brasil pelo 3º ano consecutivo (2020, 2021, 2022) ultrapassou o limite de captura de albacora-bandolim que é de 6.042,0t (original). Com isso, o Brasil poderá ser novamente punido na reunião Anual da Comissão a reduzir as suas capturas, entre outras medidas adicionais, que podem ser requeridas.
Para cumprimento das obrigações perante a ICCAT, em março foi publicada a Portaria Interministerial MMA/MPA nº 2, de março de 2023, que estabelece para o ano de 2023 o limite de captura das espécies Albacora branca (Thunnus alalunga), Albacora bandolim (Thunnus obesus) e Espadarte (Xiphias gladius) no Mar Territorial, na Zona Econômica Exclusiva (ZEE) e nas águas internacionais para embarcações de pesca brasileiras.
Temos o início, mas não o todo. A partir disso, é necessário que o Brasil tenha capacidade de controlar o que foi utilizado.
Isso dependerá da implementação do monitoramento desta atividade com observadores de bordo com cobertura adequada, melhoria das informações obtidas pelos mapas de bordo e de produção, redução do tempo de recepção e tratamento de dados de captura, entre tantas outras medidas de monitoramento e controle.
Ainda assim, o estabelecimento de uma cota nacional demandará um estreitamento da produção atual do setor, nesse caso algumas questões devem ser respondidas: quem fica com o que; Quais modalidades de pesca serão beneficiadas pela cota e como se dará a distribuição?.
Nós, que passamos como país pela transição do governo federal, no que se refere especificamente à pesca e à reestruturação administrativa proposta, com o retorno da gestão compartilhada MPA/MMA, não temos ainda a previsão de um novo calendário para a realização de reuniões da Rede Pesca Brasil, do Comitê Permanente de Gestão de atuns e afins, isto em momento tão crítico.
Desse modo, outra vez, os desafios se acumulam em espaço e tempo na gestão pesqueira dos atuns e afins no Brasil e agrava a situação do país na ICCAT.
Referências
*Base estatística da ICCAT, Informações de Captura - Task 1. Disponível em: <https://iccat.int/en/accesingdb.html>
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